Por primeiro, o deficiente, tem, como ser humano que é, percepção da realidade diferenciada, dado que cada um possui um psiquismo específico. Logo, deficientes visuais, por exemplo, enxergam a realidade de modo peculiar.
Em segundo passo, há, em regra, um abismo entre a apreensão do objeto pela pessoa sem deficiência em relação àquela que a detém. Por isso, o cognominado “normal” não compreende, com a devida métrica os reclamos dos mutilados de alguma sorte.
Em terceiro giro, o Poder Judiciário, encampado por “indivíduos sadios” em sua maioria, não vem observando, como seria o esperado, a acessibilidade no que tange ao Processo Judicial eletrônico (PJe). Aliás, “pessoas capacitadas” por não pertencerem à bandeira da protagonização dos ideários dos deficientes deliberam como se fossem mandatárias destes!
Sendo assim, ciosa da responsabilidade que a envergadura do mister lhe impõe, por constar o timbre da oficialidade, sabedora de que a coisa pública deve ser tratada em prol do bem comum, sem personalismos e excentricidades, é que a Comissão Permanente de Acessibilidade do Processo Judicial eletrônico da Justiça do Trabalho (CPA-PJe-JT), em reunião datada de 16 (dezesseis) de janeiro do fluente ano, esplendeu o seguinte documento:
De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, quase 24% da população brasileira apresenta algum tipo de deficiência. Essas pessoas estão conquistando grande espaço no mercado de trabalho, tanto no setor público quanto no privado, mormente por força do artigo 37, inciso VIII da CF/88 e pela aplicação da Lei de Cotas – Lei 8.213/91 – que determina a porcentagem de funcionários ou empregados com deficiência que a administração pública e cada empresa devem contratar, de acordo com seu respectivo número total de trabalhadores. Por conta disso, as demandas trabalhistas envolvendo pessoas com deficiência estão cada vez mais presentes em nossas instâncias jurisdicionais.
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A Justiça do Trabalho, seja pela nomeação de servidores com deficiência ou pela ampla prestação jurisdicional que a notabiliza pela agilidade e sensibilidade em relação às questões sociais e humanas, precisa assumir uma consciência de seu papel atitudinal, por meio de seus magistrados e servidores, visando ao atendimento de todas as necessidades que envolvem recursos de acessibilidade.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), foi ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 186, de 9 de junho de 2008 e promulgada pelo Presidente da República por intermédio do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, incorporando-se ao ordenamento jurídico brasileiro com força de Emenda Constitucional (CF/88, art. 5º. § 3º). Esse importante tratado, e norma constitucional no Brasil, oferece um novo paradigma na conceituação da deficiência, vez que, pelo pensamento ali embutido, a deficiência agora pertence à sociedade, que ainda apresenta tantas barreiras arquitetônicas, tecnológicas, políticas, econômicas e, principalmente, comportamentais.
As características clínicas de cada cidadão não são mais o único elemento considerado para avaliar a existência e o grau da deficiência. A consequência da citada Convenção é, portanto, a utilização da CIF – Classificação Internacional de Funcionalidades – transformando a nossa visão da deficiência, que não é mais o problema de um grupo minoritário e não se limita unicamente às pessoas com deficiência visível.
O conceito de pessoa com deficiência, agora, enseja grande relevância jurídica, uma vez que inclui na tipificação das deficiências, além dos aspectos físicos, sensoriais, intelectuais e mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão está inserido, a qual se sobreleva como principal fator de cerceamento dos direitos humanos que lhe são inerentes. Esta idéia já foi agasalhada pelo Supremo Tribunal Federal em voto memorável do Ministro Marco Aurélio Mello no Acórdão do Recurso Extraordinário 440028 do final de 2013, por meio do qual a Suprema Corte invocou a convenção da ONU para determinar a adaptação de uma escola pública em São Paulo a todas as pessoas com deficiência, decisão que nos parece paradigmática, pois revela a compreensão absoluta do que até aqui se expôs.
Deste modo, o conceito de acessibilidade não se relaciona somente à eliminação das barreiras físicas, nas vias públicas, no meio ambiente, nas tecnologias, nas construções e no mobiliário, mas principalmente, à eliminação das barreiras existentes nas relações entre as pessoas, cujas atitudes podem originar e manifestar preconceito e discriminação. É o que chamamos de acessibilidade atitudinal.
Ainda que possamos contar com todo um aparato tecnológico e regras estruturais, a conscientização da sociedade para a importância de se priorizar a acessibilidade em qualquer aspecto da vida é fundamental.
A acessibilidade representa para as pessoas com deficiência o direito à eliminação de barreiras arquitetônicas, de comunicação, de acesso físico, de equipamentos e programas de informática adequados, de conteúdo e apresentação da informação em formatos alternativos, objetivando tornar o acesso dessas pessoas amplo e irrestrito (artigo 9 da convenção supracitada).
Avaliar e mensurar a importância da acessibilidade no contexto atual não é tarefa fácil. Tendo em vista sua amplitude, é entendida como um princípio a ser seguido, já que deve ser base para qualquer regra ou padrão, estando diretamente relacionada a dignidade humana, tanto que a Organização das Nações Unidas adotou a acessibilidade como fator fundante dos direitos humanos, da mesma forma que a sustentabilidade, para a agenda de desenvolvimento pós-2015. Acessibilidade, dessarte, não se limita apenas a permitir que pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida participem de atividades que incluam o uso de produtos, serviços e informações, mas oportunizar-lhes a inclusão e extensão do uso destes.
A Recomendação 27/2009 do Egrégio Conselho Nacional de Justiça encarece aos Tribunais vinculados ao Poder Judiciário que adotem medidas para a remoção de barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e atitudinais de modo a promover o amplo e irrestrito acesso de pessoas com deficiência, bem como que criem, de forma institucionalizada, comissões de acessibilidade visando ao planejamento, elaboração e acompanhamento de projetos e metas direcionadas à promoção da acessibilidade a essas pessoas. Em sua alínea "I", determina que os órgãos do poder Judiciário elencados nos incisos II a VII do art. 92 da Constituição Federal providenciem "aquisição de impressora em Braille, produção e manutenção do material de comunicação acessível, especialmente o website, que deverá ser compatível com a maioria dos softwares livres e gratuitos de leitura de tela das pessoas com deficiência visual; (grifo nosso)".
Esta determinação certamente contempla também o sistema Processo Judicial Eletrônico, não só por se tratar de uma forma de comunicação que deve ser acessível, mas ainda por se apresentar por meio da web. Assinalamos, por oportuno, que a menção a software livre, no dispositivo supra infocado, refere-se, por óbvio, à garantia de acesso gratuito a todos, na medida em que sejam operacionais. Em não sendo, há que fazer uso de mecanismos que aceitem qualquer outra ferramenta assistiva.
Não se deve perder de vista também o caráter psíquico do indivíduo em situação de dependência que poderá inclusive acarretar transtornos irreversíveis de ordem emocional como transtorno de pânico, depressão, entre outros. À guisa do mal que a dependência propele colige-se a lição de Elio D`Anna:
Depender é o efeito de uma mente tornada escrava por apreensões imaginárias, pelo próprio medo… A dependência é o efeito visível da capitulação do ‘sonho’. A dependência é uma doença do Ser!… Nasce da sua própria incompletude. Depender significa deixar de acreditar em si mesmo. Depender significa deixar de sonhar.”
Diante da constatação por parte de quase 2000 advogados com deficiência visual inscritos na OAB, e de incontáveis servidores e usuários de que o sistema PJe é inacessível, - hostil mesmo a qualquer ferramenta assistiva - faz-se mister a adoção urgente de soluções intrínsecas ao sistema, às quais não são onerosas e tampouco acarretam dificuldades insuperáveis de implantação.
Vale finalmente reiterar, que a acessibilização do sistema PJe não implica custos para a administração, tendo em vista tratar-se da adoção de meras normas de desenvolvimento. Tornar um sistema acessível não requer a aquisição de software ou qualquer outra ferramenta, basta seguir as diretrizes internacionais de acessibilidade (Web Content Accessibility Guidelines - WCAG), desenvolvidas pelo World Wide Web Consortium - W3C, um consórcio multinacional de empresas que elaborou um conjunto de normas de desenvolvimento Web.
Comissão Permanente de Acessibilidade do Processo Judicial eletrônico da Justiça do Trabalho (CPA-PJe-JT), Brasília,16/01/2014.” (sic)
Sinto-me, como deficiente visual que sou, honrado em integrar a comissão em tela. Porém, sobreleva em meu espírito a responsabilidade que pesa em meus ombros, já que, com certeza, deliberações colegiadas importantes se nos aguardam. Quiçá, tenhamos ânimo, doçura sem servilismo, firmeza sem arrogância, dentre outros predicados, para fazermos jus à tão nobre missão. |